Manhã do dia 17/04/09...

Em Curitiba faz o dia mais frio do ano (até o momento).
Tiro meu filho de seis meses da cama às 6h30, enrolo-o no cobertor, chamo o elevador, coloco-o na cadeirinha do carro e, mais uma vez, faço o caminho até a casa da minha mãe, onde o pequeno ficará até as 19h quando eu retorno do trabalho.
Saio preocupada, meu marido teve uma ameaça de infarto nesta semana. Ele tem só 36 anos. Não bebe. Não fuma. É magro. Não faz exercício regularmente porque o trabalho não deixa sobrar um tempo para isso.
Fez todos os exames, aparentemente está tudo bem, mas somente a constatação da ameaça de perdê-lo para um infarto me fez repensar um monte de coisas e me deixou apreensiva por um bom tempo, com certeza.
Meu subconsciente bem que me dizia que algo iria acontecer.
O quase infartado vai pegar a estrada nesta noite, junto com outros homens da família. Vão pescar lá pras bandas do Mato Grosso do Sul. E a sensação ruim ainda continua dentro de mim.
Deixo meu filho e junto meu coração, apertaaaaado. ‘Bora enfrentar mais 40 minutos de trânsito intenso.
Debaixo de uma marquise há duas pessoas dormindo. Devem sentir frio. Talvez fome.
Lembro dos quatro menininhos que eu “adotei” para presentear nas datas especiais (Natal, Páscoa, Dia das Crianças...). Moram numa casinha muito precária na beira de um rio que passa pela periferia da cidade. Lembrei dos olhinhos brilhando quando me viram chegar com ovos de Páscoa no último domingo. Lembrei do abraço que me deram, todos sujinhos, descalços, com o nariz escorrendo, mas com cada rostinho com um sorriso mais gratificante que o outro.
Pensei no quão “volátil” foi este meu ato de presenteá-los no Natal e na Páscoa. Fiz um acordo com minha mãe. Ela dava a cesta básica para a família. Eu dava as guloseimas e presentes (ou ovos, no caso da Páscoa) para as crianças.
Queria muito que eles entendessem que aqueles ovos não significavam apenas “chocolate”, mas significavam principalmente o meu desejo de “renovação” pras vidas deles! Mas achei que eles eram pequenos demais para explicar isso a eles, e a empolgação deles ao verem os ovos deixaram-nos totalmente surdos e cegos para qualquer outra coisa.
Lembrei do pequeninho de 2 anos que, por essas coincidências da vida, tem o mesmo nome do meu filho. Nunca vou esquecer aquele abraço, aquele rostinho, aquele sorriso...
Tá, e daí? Será que hoje eles têm o que comer? Eu posso voltar lá volta e meia, levar alguma ajuda, roupa, comida... Mas eu vou conseguir resolver o futuro daquelas crianças? Eu sei a resposta, e isso me entristece.
Volta e meia algum intrometido (a) que me vê sair de lá diz: “Aquela que tem os 4 meninos? Ela não presta, o marido dela não vale nada, andava até preso há alguns dias! Não trabalham, não fazem nada da vida. Não merecem ajuda!”
Mas e daí? - eu me pergunto. Que culpa tem estas crianças?
E estas pessoas que estavam dormindo ali embaixo daquela marquise?
E aquela criança cochilando naquela “carrocinha” enquanto sua mãe vai recolhendo papéis, embalagens, materiais recicláveis que possam ser revertidos em alguns poucos trocados para comprar comida para a família?
E aquelas crianças africanas que eu vi naquele documentário? Imagens chocantes, praticamente desumanas...
O sinal abre e o carro de trás buzina impaciente para que eu arranque com o carro.
“Que se dane o motorista aí atrás!” Penso enquanto arranco pisando fundo.
Ele deveria se sentir tão culpado quanto eu me sinto em dias como esses, afinal ele também tem carro, tem um trabalho, óculos escuro de marca famosa e um relógio bonito no pulso.
Tem dias em que eu tenho vontade de sair ajudando um por um, mas eu lembro que eu não tenho dinheiro pra isso. Que não posso abrir mão do que tenho, pois vai me fazer falta no final do mês. Mas me sinto egoísta demais por isso.
Sim, eu dou um duro danado para ter o meu salário no final do mês. Tenho que abrir mão de ficar com meu filho para isso. Mas poxa! Eu tive oportunidade de estudar, mesmo que em escola pública a vida inteira, para conquistar um bom emprego e ter um bom salário.
Eu tive oportunidade de me firmar na vida e caminhar com as minhas próprias pernas. Física e financeiramente falando. E estas pessoas? Elas provavelmente não tiveram oportunidade nenhuma...
Mais adiante, no meu trajeto, eu sei que terão mais umas 3 marquises sob as quais sempre tem alguém dormindo. Juro para mim mesma que não vou nem olhar, mas é inevitável. Tenho vontade de parar o carro e ir até lá, deixar pra eles o que eu tiver de dinheiro na carteira, mesmo que pouco, talvez dê para eles tomarem um bom café da manhã, pão para a fome e café para esquentar o corpo gelado, quase duro de tão frio.
A via é rápida e eu não posso parar. E mais um dia eu vou me sentindo culpada, cada vez mais culpada.
Piso fundo. Sei que eu sozinha não vou resolver a vida de ninguém. E, exatamente por isso, tem dias que eu preferia nem existir.

Comentários

Renatinha disse…
Ai, urbANNA,
Não pode ser assim.
Sei que não queríamos nunca ver crianças com fome, frio, medo, abandonadas. Sei que as crianças foram feitas para sonhar e voar...
Mas o importante é vc fazer o que está ao seu alcance para não sofrer com isso. Eu sou assim só que com cachorrinhos, vc bem sabe, tenho meus 2 de rua e cada um que vejo tenho vontade de fazer algo, mas não posso, isso me frusta, me faz chorar complusivamente em muitas ocasiões, mas mesmo assim eu queria existir sim, para desfrutar dos meus cães sardentos, assim como se vc não existisse, quem iria encher o Gui de beijos? Hein?
beijos e bonita reflexão...
Re
PS. Me conta mais seu marido está melhor? Que susto...
Cláudia disse…
Quando a gente se torna mãe, o mundo fica diferente aos nossos olhos, em especial as criancinhas de rua.
Nem sei quantas vezes cheguei em casa chorando.
Ninguém resolve o problema do mundo com pequenas atitudes, mas imagine que se voce nao tivesse ido lá com seus ovinhos de Páscoa, nem essa alegria eles teriam tido.
Não importa se antes ou depois a vida deles continua ruim. Importa que você se doou em algum instante, e cada um vai se doando um pouquinho e melhorando um tantinho a vida de alguém. Não despreze nunca um gesto tão bonito que é o de dar algo a alguém, mesmo que não seja o suficiente.

Seu marido vai ficar bem, terá sido só um susto, quem sabe pra voces valorizarem tudo de bom que há na vida de ambos.

Ele vai, claro, passar cinco dias sem tomar banho nem escovar os dentes, tirando meleca do nariz e limpando na bermuda, fazendo xixi no rio de pé na ponta do barco, cortando a unha do dedão do pé com os dentes e contando piada e falando palavrão o dia todo!

beijos pra vocês
UrbAnna disse…
É, Rê!
Não dá pra ser assim mesmo. Mas é tão triste pensar nessas crianças sem perspectiva de um futuro melhor... Por falar em melhor, sim, o marido está melhor. Foi até pescar! Mas me deu um termendo susto!!!
Beijos

Clau,
Vou continuar com meus pequenos gestos mesmo sabendo que isso nao vai mudar a vida deles. O marido está bem sim, os resultados dos exames foram bons e tenho certeza que isso vai fazê-lo repensar a respeito do tempo que fica com o filho dele e o tempo que dedica ao trabalho... E eu tb aposto que ele cometeu todas essas barbaridades que vc descreveu. A pescaria é só desculpa pra fazer tudo isso!
Beijos

urbAnna

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